sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

A Liturgia Romana da Idade Média - Séculos VIII ao XIV

Com o fenômeno da “migração” da Liturgia romana para as igrejas franco-germânicas, a nobre simplicidade de uma Liturgia romana austera e prática se mistura com a loquacidade sentimental, comovente e dramática da Liturgia galicana que reflete bem a mentalidade religiosa dos povos franco-germânicos (caracterizada por um pavor diante da divindade, forte sentimento de culpa, medo do juízo, um grande individualismo). Surge uma Liturgia híbrida: romano-franco-germânica. 

São introduzidas na missa inúmeras orações em que o sacerdote confessa privadamente e em silêncio as próprias culpas e pede perdão (prática que vai aparecer pouco a pouco no começo de quase todas as partes da missa). E porque estamos diante do Juiz terrível, do mistério tremendo, as orações (sobretudo a oração eucarística) devem ser ditas em voz baixa (em segredo!) pelo sacerdote. Muitas orações são de tipo novo, dirigidas de preferência ao próprio Cristo e não mais, como na forma romana clássica, ao Pai através de Cristo. A Liturgia é colocada longe do alcance do povo. Não há mais participação ativa do povo na missa. O caráter comunitário, próprio da Liturgia romana, desaparece. Todos os papéis que antes, na Liturgia romana clássica, eram distribuídos entre vários ministros, agora são assumidos exclusivamente pelo sacerdote celebrante que, no seu isolamento lá no altar, reza a sua missa ‘para o povo‘. O povo, que na missa perde o contato com a Palavra e se ausenta cada vez mais da mesa da comunhão, é apenas um mudo espectador de uma Liturgia clerical rezada à distância, em latim, de costas. Multiplicam-se os sinais da cruz e genuflexões do padre na missa. Multiplicam-se as missas por intenções e devoções particulares. Multiplicam-se as missas rezadas pelos padres privadamente, isto é, sem presença de pessoas. A missa é explicada não como memorial pascal, mas alegoricamente (como uma espécie de ‘encenação’ simbólica dos passos da paixão de Cristo feita pelos padres). Cresce a preferência pelas devoções. Multiplicam-se as festas dos santos. Introduz-se a prática da penitência privada. O Tríduo pascal é dramatizado com a inclusão do domingo de ramos, das cerimônias do lava-pés, da comovedora adoração da Cruz (com o “Eis o lenho da cruz” cantado três vezes, os “impropérios”, e a aclamação “Deus Santo”), dos muitos e profundos ritos da Vigília pascal (bênção do fogo, aclamação “Eis a Luz de Cristo“, solene louvação do círio cantando o “Exsultet“ e quase toda a cerimônia da bênção da água batismal). Tudo isso praticamente não existia na Liturgia romana pura que, como dissemos, se caracterizava por nobre simplicidade e sobriedade. 

Esta “nova” Liturgia, tanto em sua expressão externa quanto em sua compreensão teológica e vivência espiritual, vem carregada de dramatização nas ações, forte individualismo, clericalismo e devocionalismo. 

Em tempo de crise espiritual e litúrgica na Igreja de Roma a partir do século IX, implanta-se na cidade eterna, por influência dos piedosos imperadores Otões, a Liturgia romano-franco-germânica, cuja história nos é conhecida. Assim foi “salva” a Liturgia da diocese de Roma em tempo de crise. 

Superada a decadência sofrida por Roma no século X, o papa Gregório VII assume as rédeas da Liturgia romana, mas sem grandes sucessos. Por causa da supervalorização do sacerdócio ministerial (ordenado), acaba reforçando a monopolização clerical das ações litúrgicas. Não consegue, portanto, recuperar o caráter comunitário e participativo da Liturgia romana antiga. Além do mais, a centralização romana que se instaura em torno da autoridade papal faz com que todas as igrejas do Ocidente sejam obrigadas a adotar o tipo de Liturgia que em Roma é celebrada. 

Outro papa que se destaca na reforma litúrgica romana é Inocêncio III. Dedicou-se, sobretudo, à reforma dos livros litúrgicos, adaptando-os para o uso da cúria romana, onde a maioria dos padres rezava a missa privadamente. Surge daí o Missal da cúria romana, um livro que, naturalmente, não prevê a presença de uma assembleia litúrgica. 

Este missal foi amplamente difundido pela Europa afora através dos franciscanos. O mesmo se deu com o livro de oração eclesial (Ofício Divino). Consolida-se, assim, para a Igreja do Ocidente a estrutura básica e o espírito da Liturgia híbrida romano-franco-germânica. 

Transformada a Liturgia num fato clerical (não mais como celebração da comunidade), o povo (sem participação ativa) mergulha no emaranhado das inúmeras devoções particulares, dentre as quais se destaca a adoração da hóstia na missa. O costume ‘devocional’ das missas privadas leva à multiplicação dos padres “altairistas”. 

As missas são dramatizadas com a introdução de muitos gestos e movimentos rituais do padre no altar. Também os sacramentos passam por mudanças significativas e são vistos mais como “remédio”. A própria teologia agora virou especulação racional sobre Deus e seus mistérios em categorias aristotélicas. Numa palavra, a vida espiritual do povo cristão caminha à margem e fora do âmbito da Liturgia como celebração do mistério pascal. 

No “outono da Idade Média” o individualismo religioso se exacerba. A propaganda dos “frutos” da missa transformam a religião num grande jogo de negociata com Deus. Adotam-se as representações sacras como meio de ‘suprir‘ uma Liturgia totalmente fora do alcance popular. A espiritualidade se carrega de extremo intimismo. A piedade popular atinge o auge de autonomia em relação à piedade litúrgica.

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